sábado, 24 de abril de 2010

Os Pitaguary



Há vários lugares de memória na área Pitaguary. Entre esses lugares destaca-se a figura da “mangueira centenária”, da “senzala dos escravos” e da gruta ou do “buraco” de Santo Antônio, para citar apenas alguns. A mangueira é constantemente identificada com a figura da “mãe natureza”, que protege, dá paz e conforto. Ela está no centro das atenções, pois, segundo contam os narradores indígenas, “naquele pé de mangueira, exatamente lá, morreu muito índio enforcado e matado de fome”.
A mangueira é símbolo de um tempo pretérito, mas também de um momento vivido no presente. Ela é a lembrança do que se passou ao mesmo tempo em que se torna cenário de atividades contemporâneas de suma importância. Por exemplo, é sob a sombra da “mangueira sagrada” que, no dia 12 de junho de cada ano, os Pitaguary realizam um evento tradicional, cujo maior objetivo é apresentar o Toré para a própria comunidade e para visitantes que vêm de fora da área indígena.

O Toré Pitaguary é uma dança que se inicia com os participantes dando as mãos e formando um grande círculo, como numa "corrente" de oração. Aqueles que dançam seguem os comandos dos chamados “puxadores” de Toré, geralmente o cacique ou o pajé. O canto é acompanhado pelo som das maracás e muitas vezes conta com a batida de tambores que ficam no centro da roda. É nesse momento que, segundo contam os narradores, a mangueira chora. Dizem que o clamor dos índios escravizados no passado é tão forte que, ao “brincar o Toré”, debaixo da árvore chove. Para o antigo pajé Pitaguary, seu Zé Filismino, a chuva nada mais é do que o choro da mangueira.






O ritual se completa com a ingestão de uma bebida, preparada à base de frutas nativas da região, e servida para todos os membros num recipiente único (uma cabaça) que deve sempre girar em sentido horário. Os Pitaguary não têm o costume de experimentar dessa bebida, a “atanhanga”, em momentos que não sejam o da dança, indicando, com isso, que se trata de uma bebida de uso ritual.

Além do Toré, as narrativas orais constituem um importante elemento da cultura Pitaguary. Nelas, é comum encontrar referências à idéia do contato entre índios e não-índios. Esse momento é representado como uma descoberta fundada sobre a violência e seguida de aprisionamento. Um dos personagens-chave de muitas histórias é o “velho Miguel Barão”, rico fazendeiro que teria usurpado larga faixa de terra pertencente aos índios. O “velho Miguel Barão” personifica a invasão e o processo de escravização de que tanto falam, em suas narrativas, os Pitaguary.
Há também as crenças nos chamados “seres encantados”, presentes nos relatos míticos que têm como personagem principal a “caipora”. A caipora é símbolo da afirmação de um saber indígena sobre a “mata”. Histórias relacionadas a ela aparecem, freqüentemente, quando o assunto é a caça. Ao sair para caçar, dizem alguns mais velhos, “o pessoal vê gemido, vê pancada, vê chiado, fica ouvindo coisa que não vê”. Por que? Porque “ali tem encanto”, “caipora é encantado”. Ao contar essa história, alguns utilizam a referência com o artigo definido “a” (a caipora), outros a colocam no masculino, com o artigo "o", fazendo concordância com a figura do “caboco” ou “caboquinho”.



Assim como o Toré, que de “brincadeira” passou à “arma de guerra”, as narrativas, além do seu caráter lúdico e pedagógico, passaram a ser instrumentos eficazes na demarcação da(s) singularidade(s) do povo Pitaguary, uma singularidade que se quer dizer histórica, política e cultural. Assim, a atividade de rememorar e narrar hoje tem uma importância que extrapola o âmbito da socialização interna desse povo.

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